Quinta-feira, 27 de Novembro de 2025

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Desde que Martin Heidegger publicou Ser e Tempo, em 1927, a filosofia nunca mais olhou a existência humana do mesmo modo. Ao deslocar o foco da razão para a experiência concreta do ser, o pensador alemão revelou algo que permanece urgente: viver é, antes de tudo, compreender-se como um ser lançado no mundo, consciente de sua finitude e capaz de escolher com autenticidade as próprias possibilidades. Em outras palavras, viver é assumir um propósito, não como projeto de sucesso, mas como um modo de estar no mundo de forma verdadeira.

Heidegger chamava esse ser que interroga o próprio existir de Dasein, “ser-aí”. Diferente do sujeito cartesiano, que pensa para existir, o Dasein existe antes de pensar. Ele está imerso em um cotidiano que o arrasta para a dispersão, para o “se” impessoal, esse lugar onde todos fazem o que “se faz”. No entanto, é justamente quando se confronta com sua própria finitude, com o fato inevitável da morte, que o ser humano tem a chance de despertar para uma vida autêntica. Esse despertar é o que hoje poderíamos chamar de viver com propósito, incluindo nossa historicidade e assumindo as consequências do futuro.

O propósito, nessa chave heideggeriana, não se confunde, porém, com metas de carreira, frases motivacionais ou planos de cinco anos. Ele nasce do reconhecimento da temporalidade como essência do ser. O homem, nessa dinâmica temporal, é o único ente que vive projetado para o futuro, mas que só se realiza no instante presente. O tempo, portanto, não é uma sucessão de minutos, mas a textura da existência. Quem vive sem consciência do tempo, quem se perde na velocidade ou na distração, corre o risco de existir sem realmente viver.

É nesse ponto que Heidegger ajuda a iluminar um fenômeno contemporâneo: o modo como a geração Z (nascidos entre meados dos anos 1990 e 2010) lida com o tempo e o sentido da vida. Criada sob o domínio das telas, essa geração aprendeu a conviver com a simultaneidade onde tudo acontece ao mesmo tempo, em múltiplos lugares. O presente se dilui em notificações, e a experiência do “agora” é constantemente interrompida. Eles são inclinados a viver o presente com mais urgência do que seus antecessores, não por indiferença, mas porque a própria noção de futuro se tornou fluida e muito distante.

Paradoxalmente, trata-se de uma geração que valoriza o propósito, fala sobre saúde mental, busca impacto social e recusa carreiras vazias de sentido. Mas, ao mesmo tempo, sente-se exausta, ansiosa e perdida diante da avalanche de possibilidades. A temporalidade digital, fragmentada, hiperacelerada e ao mesmo tempo entorpecida, criou uma nova forma de “inautenticidade”: o sujeito conectado a tudo, mas desconectado de si. O “ser-no-mundo” tornou-se o “ser-na-tela”.

Heidegger, se vivesse hoje, talvez dissesse que a geração Z habita um tempo em que o “ser” foi substituído pelo “scroll”. O perigo não está apenas na tecnologia, mas na perda do confronto com a própria finitude. Quando tudo é imediato, nada parece ter peso. E sem o peso do tempo, não há propósito que se sustente.

Recuperar o sentido do “viver com propósito”, portanto, não significa desligar o celular ou fugir do mundo digital, mas reaprender a habitar o tempo, reconhecer o presente como o único lugar onde a vida realmente acontece. Heidegger chamaria isso de autenticidade, ou seja, a capacidade de escolher-se a si mesmo, mesmo dentro da rotina e da dispersão.

Se o filósofo alemão tinha razão ao dizer que o ser humano é um “ser para a morte”, então viver com propósito é lembrar-se, a cada dia, de que o tempo é finito, e que é justamente essa finitude que dá sentido às escolhas, aos afetos e às ações. A geração Z, tão sensível às causas coletivas, à valorização do equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, à consciência de consumo, o respeito à diversidade e inclusão e foco na experiência, talvez possa nos ensinar que é possível viver mais o presente nesse sempre difícil equilíbrio existencial que o futuro, e também a morte, nos impõe.

(Instagram: @edsonbundchen)

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