Sexta-feira, 30 de Maio de 2025
Por Redação Rádio Pampa | 29 de maio de 2025
Há um silêncio denso que repousa sobre certas ideias enquanto elas permanecem guardadas em livros, entre as prateleiras do tempo. Mas, como brasas sob a cinza, bastam as condições certas – um sopro histórico, uma conjuntura crítica, um líder disposto – para reacendê-las em chamas devastadoras. Este é o alerta que ressoa ao revisitarmos a obra de Johann Gottlieb Fichte, um dos nomes centrais do idealismo alemão pós-kantiano e cuja leitura se torna muito oportuna diante do reacionarismo, travestido de conservadorismo, que temos visto aflorar nos últimos anos. As ideias, boas ou más, em última instância, são a ponte que liga o desejo à ação, colocando em ordem de marcha tanto a virtude quanto a barbárie. A filosofia, a propósito, tem sido abrigo para o constante repensar da existência humana, porém nem sempre repositório dos augúrios mais edificantes.
Fichte (1762-1814) é, para muitos, uma figura acadêmica, um filósofo com contribuições notáveis à metafísica e à epistemologia. Mas por trás do vigor teórico de sua defesa do eu absoluto, há uma sombra que projeta sua influência muito além das salas de aula. Quando, em meio às invasões napoleônicas, Fichte escreve seus “Discursos à Nação Alemã”, ele o faz com uma pena impregnada de nacionalismo, exclusivismo e desconfiança do “outro”.
A ideia de que um povo é definido por sua raça, língua e cultura – e que a homogeneidade desses elementos é pré-requisito para a construção de um Estado forte – pode parecer, para alguns, uma abstração teórica. No entanto, as palavras de Fichte, especialmente ao definir o “bom alemão” como aquele que não seria, por exemplo, um judeu, ultrapassam qualquer pretensão de neutralidade filosófica. São palavras que estabelecem fronteiras, que excluem, que desumanizam. Palavras que, tragicamente, encontrariam eco mais de um século depois, sob a bandeira nazista.
Não é coincidência que ideias como a do “judeu como um estado dentro do Estado”, mais tarde analisadas por Hannah Arendt, tenham sido armas retóricas do regime hitlerista. A afirmação abominável de Fichte de que apenas com “novas cabeças, sem nenhuma ideia judaica”, os judeus poderiam ter direitos civis, não pode ser lida senão como um ensaio precoce de genocídio simbólico. Quando Hitler e seus ideólogos buscavam um verniz intelectual para seus horrores, recorreram a essas velhas palavras, resgatadas do sono da história.
Este fenômeno nos obriga a uma reflexão inadiável: não há ideia inofensiva apenas porque está no passado. Palavras têm peso, têm direção, têm consequências. O pensamento humano é matéria viva – pode construir pontes ou levantar muros, iluminar caminhos ou preparar valas. Não por acaso a força das palavras continua a deliberar destinos e estabelecer rumos.
E mais perturbador ainda é saber que essas ideias más não brotam apenas de mentes obscuras ou ignorantes. Fichte era um pensador refinado, profundo conhecedor da tradição filosófica, o que nos força a reconhecer que nem sempre a razão caminha junto da ética. Que o brilho da inteligência pode, por vezes, esconder abismos morais.
Desse modo, o estudo da história e da filosofia não deve ser jamais um exercício de arqueologia neutra. Devemos ler os grandes pensadores com atenção, sim, mas também com vigilância. Devemos questionar, confrontar, contextualizar – pois o que hoje parece teoria inócua pode, amanhã, ser o roteiro de uma tragédia. Como bem lembrou há poucos dias a Ministra do STF, Cármen Lúcia: “Nunca um tirano anunciou ser contra a democracia”.
Finalmente, como nos advertia George Steiner, “o que nos distingue como espécie é que sabemos o que fazemos – e mesmo assim fazemos”. Cabe-nos, portanto, cultivar a memória, o espírito crítico e a coragem para denunciar, desde o nascedouro, toda ideia que coloque em risco a dignidade humana. Porque, no fim das contas, a barbárie começa nas palavras, ou, na dissimulação delas, – e é por elas que devemos começar a resistência.
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