Quinta-feira, 02 de Maio de 2024

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“Que comam brioche”, teria dito Maria Antonieta, na França pré-revolucionária, frase nunca confirmada, mas que acabou simbolizando o descaso da nobreza para com os famélicos camponeses franceses que lutavam por alimentos básicos e por sua própria sobrevivência. A fome sempre foi um elemento desestabilizador de governos de diferentes matizes, por isso mesmo, manter os reinos seguros garantindo ao povo pão e circo é até hoje uma máxima que não perde atualidade. Tanto a subnutrição como as fomes catastróficas, passaram a definhar a partir do Iluminismo e da Revolução Industrial. Thomas Malthus, uma espécie de profeta do apocalipse da fome, foi desmentido quando se constatou que o estoque de alimentos pode crescer geometricamente ao se aplicar conhecimento para aumentar a quantidade de gêneros capaz de ser extraída de um pedaço de terra. Assim, o flagelo da subalimentação, ainda que trágico, não desperta mais a atenção que mereceria como um grande tema sociológico, até porque há robustas evidências de que a revolução verde se encarregou de diminuir esse impacto, embora muitos países ainda sofram com a falta crônica de alimentos.

Mesmo havendo alimentos suficientes, a combinação da estupidez humana com os desgovernos, tem tirado o pão da boca de milhões, tornando a tragédia da miséria moralmente ainda mais imperdoável. É, portanto, no campo da teoria moral, econômica e geopolítica que se trava agora o embate mais fervoroso. Se a fome deixou de ser o problema central, igual avaliação não é possível fazer acerca da concentração da riqueza e da espoliação dos trabalhadores diante de uma distribuição de renda tão desigual que a repartição de calorias não serve mais de parâmetro, até porque “esta é a primeira sociedade na história onde os pobres são gordos”, na definição jocosa de Chris Rock. Isso posto e se a barriga vazia não é mais o critério primeiro para a crítica social, onde reside o problema?

A hierarquia de Maslow pode ser um bom caminho para tentar responder a essa questão. Publicada em 1943, na revista Psychological Review, Abraham Maslow definiu cinco categorias de necessidades humanas: fisiológicas, segurança, social, estima e autorrealização. É justamente a ausência de legitimação social e de estima da classe miserável brasileira que mutila a cidadania dos pobres. Sem acesso à educação de qualidade, à moradia digna, à segurança e à saúde, os miseráveis são impedidos de ascender a uma condição capaz de articular agendas de emancipação através de reivindicações políticas. Não basta, nessa perspectiva, comida na boca, é preciso ressignificar a existência de milhões de brasileiros, atualmente relegados a uma não existência, pois aviltados em seus sonhos mais legítimos de exercer uma cidadania real. E essa cidadania precisa ser socialmente construída e validada.

Entretanto, competir em condições, senão plenamente justas, uma vez impossível nos atuais termos socioeconômicos, mas humanitariamente menos aviltante, requer assumirmos, enquanto Nação, nossa enorme dívida social para com a legião de despossuídos que vivem no Brasil. Essa mudança, contudo, vai requerer bem mais do que ações de governo. Esse abandono dos miseráveis, a quem cabe justamente o exercício dos serviços mais penosos, insalubres, sujos e perigosos, precisará passar por uma tomada de consciência de nossas elites, entre elas a classe média instruída, forças essas capazes de articular e verbalizar, obviamente em sentido moralmente decente, um movimento que torne o debate sobre a miséria no País algo digno de constar na agenda discursiva nacional. Hoje, lamentavelmente, essa reflexão é jogada para debaixo do tapete. Não existe esse enfrentamento da cruel realidade de nossos pobres. Tornar possíveis ações de cunho objetivo e concreto para combater a miséria, deverá assumir também a condição de quebrar o ciclo vicioso de ódio aos miseráveis, permitindo-se, também a eles, acesso a outras dimensões que a vida oferece, além das migalhas que recebem sem acesso a nenhum tipo de privilégio.

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