Terça-feira, 14 de Outubro de 2025

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No imaginário corporativo, a meritocracia é quase uma religião laica. Nela, o talento e o esforço individual seriam suficientes para levar qualquer pessoa ao topo. A promessa é clara e sedutora: cada um colhe exatamente o que planta. O problema é que, transplantada para o Brasil, essa ideia, que poderia ser motor de mobilidade, torna-se um sofisticado álibi para manter as coisas como estão, solapando a ideia de maior solidariedade e equidade. O quadro é agravado quando olhamos para as estatísticas sobre concentração de renda e abismo salarial entre quem ganha mais e quem menos nas empresas. Segundo pesquisa do relatório Global Wealth Report, em 2023, o 1% mais rico da população detinha quase a metade da riqueza nacional. Os executivos, por sua vez, recebem, em média, quase 40 vezes mais do que os trabalhadores de chão de fábrica. Entre as grandes corporações, há casos que ultrapassam 1.100 vezes de diferença!

O filósofo Michael Sandel, em A Tirania do Mérito, expõe a engrenagem psicológica dessa crença meritocrática que está na base do discurso de legitimação do fenômeno. Quanto mais se exalta o mérito, diz ele, mais se fortalece a ideia de que os vencedores são inteiramente responsáveis por sua vitória, e os derrotados, integralmente culpados por sua derrota. A lógica é circular e cruel: quem não chegou lá falhou porque não se esforçou, ou porque não teve fé suficiente. E, se não se esforçou ou não acreditou, que arque sozinho com as consequências. Trata-se de uma lógica aparentemente defensável. Olhada mais de perto, porém, constata-se que há muitos outros elementos a serem observados.

É preciso, preliminarmente, entender como chegamos até aqui. Essa distorção sobre meritocracia se fortaleceu no Brasil ao encontrar um aliado de peso: a teologia da prosperidade. Presente sobretudo em igrejas neopentecostais, esse discurso mistura autoajuda, religiosidade e um verniz liberal que tributa todo sucesso ou fracasso exclusivamente ao indivíduo e, por extensão, à vontade divina. Se prosperou, é sinal de bênção. Se não teve sucesso, a culpa é sua, exclusivamente sua. O resultado é devastador: dissolve-se qualquer senso de responsabilidade coletiva e desmonta-se o argumento por mais solidariedade social, uma vez que o Estado fica dispensado de trabalhar por maior cooperação social. Eventuais programas sociais muitas vezes recebem o carimbo de simples assistencialismo, que “fomentariam a ociosidade”.

O professor João Cezar de Castro Rocha observa que essa narrativa despolitiza a polis. O espaço público, onde se debatem e constroem soluções coletivas, é engolido por um mantra individualista: “vença e seja reconhecido”. Não importa se o ponto de partida é desigual ou se as regras do jogo favorecem alguns poucos; o objetivo é ser o campeão, custe o que custar. É a lógica do “The winner takes it all” num país onde muitos sequer têm a chance de participar da corrida.

Esse vácuo coletivo abre caminho para o salvacionismo. Desesperados e ressentidos, aqueles que ficaram à margem se tornam público cativo de líderes que prometem atalhos e milagres políticos. É o terreno perfeito para mitômanos e falsos profetas, que oferecem não justiça social, mas narrativas reconfortantes para explicar o infortúnio: “a culpa é sua” ou “a culpa é deles”.

A meritocracia, para funcionar, exige condições mínimas de justiça estrutural: educação de qualidade, acesso a oportunidades, regras claras e aplicadas igualmente. Sem isso, falar em mérito é vender uma ficção. Pior: é mascarar privilégios com ares de justiça.

No Brasil, a meritocracia não é apenas um ideal mal interpretado. Tornou-se um dogma conveniente. Uma lente que desfoca deliberadamente o pano de fundo das desigualdades para enquadrar apenas o indivíduo em primeiro plano. E, enquanto a câmera estiver apontada para o esforço pessoal e não para a estrutura, continuaremos a confundir privilégio com talento e desigualdade com destino. É preciso mudar esse quadro, não sem antes compreender quais mecanismos equivocados o sustentam.

Instagram: @edsonbundchen

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