Domingo, 02 de Novembro de 2025
Por Redação Rádio Pampa | 1 de novembro de 2025
O mundo suspirou de alívio. Em Busan, os presidentes dos EUA, Donald Trump, e da China, Xi Jinping, anunciaram uma “trégua comercial”. Por um ano, Washington suspenderá parte das tarifas e Pequim adiará restrições às exportações de terras raras. Mas a pausa é volátil. Nada de essencial mudou. A rivalidade sino-americana deixou de ser uma disputa de tarifas para se tornar o eixo de uma nova era – a da interdependência armada.
Trump apresenta o acordo como vitória pessoal, e Xi, como demonstração de força paciente. Ambos fingem moderação, mas nenhum recua. Trump precisa de uma foto de estabilidade para o eleitorado que ele mesmo desestabilizou. Xi precisa mostrar que o Ocidente, dividido e errático, já não dita as regras do comércio global. O resultado é um armistício temporário entre contendores que se alimentam mutuamente: quanto mais autoritária e autárquica se torna a China, mais nacionalista e protecionista se tornam os EUA. E vice-versa.
Essa guerra de tarifas, controles e sanções já não é um jogo de soma zero, mas de saldo negativo. Cada retaliação encarece insumos, fragmenta cadeias e desacelera o crescimento global. A inflação pressiona, a produtividade cai e a incerteza reina. O comércio, que já foi instrumento de integração e prosperidade, converteu-se em arma geopolítica – em vez de unir, passou a dividir.
No curto prazo, Pequim parece administrar melhor o conflito. Ao transformar a interdependência em poder, Xi criou uma rede de coerção sutil: quem quiser semicondutores, baterias ou ímãs raros precisa da China. Trump usa o mesmo argumento para expandir tarifas e subsídios que distorcem seu próprio mercado. O efeito é perverso: ao emular a China, os EUA começam a se parecer com ela – menos abertos e inovadores, mais arbitrários. O país que venceu a guerra fria em nome da liberdade econômica experimenta agora o autoritarismo (mas sem o planejamento da China), o controle (sem a eficiência), o nacionalismo (sem a coesão).
A tentativa de Trump de redesenhar o comércio mundial a golpes de bravata, como se o século 21 fosse um tabuleiro de cassino, é contraproducente: aliados humilhados, empresas desnorteadas e um sistema internacional cada vez mais descrente das instituições criadas pelos próprios EUA. A era do livre comércio – motor da prosperidade e da democracia nas últimas sete décadas – cede lugar a um mundo de licenças, proibições e chantagens cruzadas.
Pequim, por sua vez, colhe dividendos do caos americano. Com a retórica inflamada de Trump, Xi Jinping pode apresentar-se como o guardião da estabilidade e da previsibilidade. Mas se o Consenso de Washington está moribundo, o “consenso de Pequim” não inspira confiança. O crescimento chinês enfraquece, a repressão se intensifica e a inovação definha sob o peso do controle estatal. A trégua de Busan é, portanto, o retrato de dois gigantes que perderam o rumo: um tenta reconstruir muros que ele mesmo derrubou; o outro ergue muralhas para esconder suas fragilidades.
Entre essas muralhas, o mundo se estreita. As instituições multilaterais já não arbitram tensões; alianças se convertem em transações. O comércio se reconfigura em blocos que competem mais para sobreviver do que crescer. A fragmentação torna todos mais pobres.
Para países intermediários, o desafio é resistir à lógica da divisão. A América Latina, e especialmente o Brasil, tem algo a ganhar e muito a perder. Num cenário de tarifas e escassez, o Brasil lucra com a demanda chinesa por soja, carne e minerais críticos. Mas a vantagem é passageira. A longo prazo, o País arrisca-se a tornar-se fornecedor cativo de commodities num mundo de cadeias encurtadas, em que o poder se mede não pela abundância de recursos, mas pela capacidade de inovar e negociar com autonomia.
A trégua de Busan é menos o fim de uma guerra que o intervalo entre dois atos. Sob a superfície de cordialidade, subsiste a mesma lógica de desconfiança e competição existencial. Trump e Xi não fizeram as pazes, só adiaram o duelo. O perigo é que, na próxima rodada, o gatilho dispare sozinho – e o mundo descubra que, em tempos de interdependência armada, ninguém ganha. (Opinião/O Estado de S.Paulo)