Sexta-feira, 07 de Novembro de 2025

Home Amilcar Macedo O anel de Giges e o poder do anonimato digital

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Entre o anonimato e a viralização, o homem reencontrou o anel de Giges e perdeu a vergonha de ser injusto.

Platão, no Livro II da República, narra o mito de Giges, um simples pastor da Lídia que, ao encontrar um anel mágico, descobre poder tornar-se invisível. O anel tinha uma pedra que, quando girada para dentro da mão, tornava o portador invisível aos olhos dos outros; ao girá-la novamente para fora, a visibilidade retornava. Esse gesto, de voltar-se para dentro, simboliza o mergulho na esfera oculta da consciência, onde não há testemunhas nem freios externos. Libertado do olhar e do julgamento alheio, Giges assassina o rei, seduz a rainha e assume o trono.

Platão usa a parábola para propor uma pergunta inquietante: o homem seria justo se pudesse agir sem ser visto ou punido? O mito é um espelho da alma humana e, mais do que nunca, reflete o nosso tempo. As redes sociais oferecem a cada um o mesmo anel: o poder de agir sob aparente invisibilidade, sem as consequências diretas da presença física.

A internet deu a milhões o privilégio de Giges, o de não responder imediatamente pelos próprios atos. Sob o manto do anonimato, ou mesmo de perfis falsos e identidades virtuais, muitos acreditam poder dizer e fazer o que quiserem. E assim, o que Platão chamava de “corrupção da alma” renasce no espaço digital, um território em que o medo da punição se dilui e a ética se dissolve em likes e impulsos.

O anonimato transforma o comportamento. A empatia, que depende do rosto e da presença do outro, é substituída pela agressividade gratuita. A dúvida cede lugar à convicção inabalável, e o diálogo é sufocado pela retórica do ódio. O sujeito invisível sente-se autorizado a insultar, linchar e julgar, como se o espaço virtual fosse uma terra sem lei.

Platão advertia que a justiça verdadeira nasce de dentro, não do medo da punição. Agir bem apenas por temor de ser flagrado é o primeiro estágio da hipocrisia moral. Nas redes, onde o olhar do outro é difuso e as consequências são quase nulas, o teste ético é revelador: muitos só são justos enquanto são observados. O anel digital não apenas revela o caráter, ele o desnuda.

Há, contudo, uma ironia: nunca fomos tão visíveis, e ao mesmo tempo, tão invisíveis. Exibimos nossos rostos, viagens, opiniões e afetos, mas ocultamos o essencial, a consciência. A visibilidade, que deveria iluminar, virou máscara. Vivemos sob o império da aparência, onde o valor de uma ideia mede-se em curtidas, e a popularidade substitui a razão. A ágora ateniense, lugar do diálogo racional, transformou-se num coliseu de julgamentos instantâneos.

Giges matou o rei para tomar o poder; nós matamos o silêncio, o tempo da reflexão e a responsabilidade sobre as palavras. O “rei” que eliminamos é a própria razão, submetida à tirania da emoção e do impulso. Cada ofensa publicada, cada fake news compartilhada, é um pequeno golpe de Estado contra a prudência.

Talvez o que mais assustasse Platão, se olhasse para as telas de hoje, não seria a tecnologia, mas o quanto nos acostumamos à ausência de vergonha. Perdemos o senso do limite, a fronteira entre o erro e o mal, entre a crítica e a destruição. O anel de Giges foi reinventado sob a forma de um avatar, e o poder de ser invisível continua a testar nossa humanidade.

Em tempos em que a reputação pode ser aniquilada em 280 caracteres, o verdadeiro ato de coragem é o oposto da invisibilidade: assumir o rosto e o peso das próprias palavras. O desafio ético do século XXI é o mesmo que Platão propôs há mais de dois milênios, o de ser justo mesmo quando ninguém nos vê, e, sobretudo, quando todos nos veem.

* Amilcar Fagundes Freitas Macedo, magistrado

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