Domingo, 29 de Junho de 2025
Por Redação Rádio Pampa | 29 de junho de 2025
“Ele enxugou o decreto, retirando as autoridades das prisões. Só o senhor ficaria preso” (Mauro Cid).
A afirmação feita por Mauro Cid ao ministro Alexandre de Moraes durante interrogatório na ação penal do golpe não revela apenas o suposto enredo golpista. Ela expõe um vício central do processo: o julgador que pode ter sido vítima dos fatos é também o instrutor, o relator e o juiz da causa.
Esse modelo de Justiça – em que a autoridade judicial assume papel central na investigação, dirige os interrogatórios, decide que provas podem ser acessadas e, ao fim, julga o processo que ela mesma construiu – deveria soar familiar. Foi exatamente esse o arranjo que levou à anulação das condenações de Lula no caso da Operação Lava Jato.
A atuação de Sergio Moro, como se reconheceu no julgamento da suspeição pelo Supremo Tribunal Federal (STF), violou a exigência de imparcialidade objetiva. O juiz que atua como parte não é juiz. Essa premissa, corretamente aplicada para restaurar o Estado de Direito no caso de Lula, precisa agora ser reafirmada – ainda que o réu se chame Jair Bolsonaro.
A hipótese que vivemos hoje é ainda mais delicada. Não se trata apenas de excesso de protagonismo judicial. Trata-se de interesse direto no objeto do processo. A depender da linha investigativa, o ministro Alexandre de Moraes não é apenas o condutor da apuração – é também possível vítima da trama investigada. Afinal, era ele quem “ficaria preso”, ou, em outra parte do enredo, seria morto. Há, portanto, uma camada adicional de comprometimento da imparcialidade.
A sessão de 10 de junho tornou esse desequilíbrio ainda mais evidente. Durante o interrogatório de Jair Bolsonaro, praticamente não se ouviu a voz do procurador-geral da República. O protagonismo foi inteiramente do ministro Alexandre de Moraes, que, além de fazer as vezes do órgão acusador, deixou de lado a inquirição direta pelas partes e fez renascer o velho presidencialismo, conduzindo diretamente a inquirição.
Trata-se, em suma, da consolidação de um modelo em que o juiz não apenas instrui, mas interfere, acusa e julga – por vezes, com interesse próprio na causa. Não se trata aqui de motivações ocultas, mas do fato de que o julgador figura como possível vítima dos fatos apurados. Durante o interrogatório, o ministro Alexandre de Moraes formulou perguntas diretamente relacionadas a si próprio, como: “Quais os indícios que o senhor tinha de que nós estaríamos levando US$ 30 milhões, US$ 50 milhões?”; ou ainda: “Quais eram concretamente os indícios que o senhor tinha de fraude nas eleições, envolvendo ministros do Tribunal Superior Eleitoral, como o ministro Barroso, o ministro Fachin e eu?”. Em outro momento, pediu esclarecimentos sobre a minuta de decreto mencionada por Mauro Cid, que teria sido “enxugada” por Bolsonaro para deixar apenas o próprio Moraes entre os presos. Essas intervenções – feitas na primeira pessoa e com evidente conexão pessoal com os fatos – evidenciam a sobreposição de funções e comprometem a imparcialidade não apenas sob a ótica subjetiva, mas estrutural. A essa altura, já não se discute mais eventual má-fé do julgador, mas sim a assimetria funcional instaurada e a corrosão da posição institucional do juiz como terceiro imparcial.
Não se trata de minimizar os riscos democráticos representados por Bolsonaro, tampouco de relativizar a gravidade do que se passou no 8 de Janeiro. Os ataques às instituições foram reais, coordenados e inaceitáveis. O Supremo Tribunal Federal teve papel crucial na contenção da escalada autoritária – não como ator político, mas como guardião do Estado de Direito.
Justamente por isso, o que se vê hoje não pode ser naturalizado como reação legítima, mas precisa ser reconhecido como desvio institucional. A credibilidade do STF não se constrói pela vitória sobre inimigos da democracia, mas pela fidelidade às garantias que definem o próprio regime que se pretende proteger.
O risco, hoje, não está apenas no que Bolsonaro representa. Está na Justiça que relativiza garantias conforme o réu. Está na erosão do contraditório, na denegação sistemática de vistas, no uso seletivo do sigilo e na naturalização de um modelo processual em que o juiz acusa, instrui e julga – tudo sob a justificativa de proteger a ordem democrática.
No caso de Moro, houve um Supremo capaz de reconhecer e corrigir, ainda que tardiamente, os abusos. Quem vai corrigir os excessos do STF? O Judiciário, sem freios externos e sem autocontenção, torna-se autorreferente – e o desvio deixa de ser exceção para se converter em método. É aí que a democracia começa a ruir: não com tanques nas ruas, mas com o silêncio das instituições diante da sua própria deformação.
De Moro a Moraes, a lição é a mesma: não há justiça possível quando as regras mudam conforme o réu. E o sistema de Justiça que se permite agir fora das regras – ainda que em nome de boas causas – abandona a neutralidade institucional e se converte, ele próprio, em agente de erosão democrática.
Por Luiza Oliver (Advogada criminalista e mestre em direito penal)
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