Quarta-feira, 29 de Outubro de 2025
Por Redação Rádio Pampa | 1 de janeiro de 2024
“O proponente não teve projetos de pesquisa financiados pelo CNPq, como universal, nem projetos individuais Fapesp após seu ingresso na UFABC. Não realizou pós-doc no exterior. Provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas, o que poderá ser compensado no futuro”, diz um dos pareceres ad hoc emitidos em resposta ao pedido de bolsa produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico feito pela professora e pesquisadora Maria Carlotto, de 40 anos. Ela atua na Universidade Federal do ABC, na Grande São Paulo.
Se antes estava decepcionada por não ter sido aprovada, quando se ateve aos detalhes das justificativas para tanto, foi tomada pelo choque. ”Eu não acredito que eles deixaram isso passar”, pensou ela, que tem duas filhas – uma de 1 ano e outra de 2. Maria, que já escrevia um recurso ao resultado final preliminar, com base em outras inconsistências que lhe incomodaram, parou tudo. “Falei: ‘não, isso aqui não pode passar’”, afirmou.
Maria publicou no X, antigo Twitter, um desabafo. “Vontade de chorar”, escreveu. A postagem recebeu mais de 600 compartilhamentos e 3 mil likes, e gerou um posicionamento do CNPq, que classificou o trecho da avaliação como “preconceituoso” e disse que tomará as medidas cabíveis. Na nota, a agência de fomento também citou seu trabalho em prol da igualdade, que inclui extensões de períodos de bolsa e de avaliação em decorrência de maternidade.
No edital de seleção de Maria, inclusive, havia um “critério especial para pesquisadoras”, para aquelas que declarassem licença-maternidade no período considerado para o julgamento. Ter pós-doutorado ou projeto com bolsa Universal – um outro incentivo do CNPq para pesquisa – não é critério para a avaliação, conforme a própria agência destacou na nota de esclarecimento.
Segundo o CNPq, o “juízo” não foi corroborado pelo comitê assessor responsável pelo julgamento final – que usa os pareceres ad hoc para formular a decisão, mas não necessariamente precisa considerá-los. É assegurado o sigilo da autoria dessas avaliações. No caso de Maria, houve dois pareceres. O outro era favorável à cessão da bolsa a ela.
Para Maria, o julgamento final parece desconsiderar “completamente”, em suas palavras, o parecer favorável, enquanto chega a repercutir trechos – com erros de digitação, inclusive –, da avaliação negativa – não o excerto que traz o posicionamento preconceituoso. O Estadão teve acesso ao conteúdo completo das avaliações.
“Recebi um parecer que o próprio CNPq reconhece que é inapropriado, preconceituoso. Só que ele fala ‘não, esse juízo não foi levado em consideração’, mas o parecer foi porque ele sustenta a reprovação da minha bolsa. Usaram um parecer misógino (misoginia é o ódio direcionado a mulheres) para recusar a minha bolsa. Isso é um absurdo.”
Faltou, segundo ela, 0,2 ponto para que fosse aprovada. “Não é sobre mim, sobre a minha bolsa, é sobre um sistema que precisa mudar.” Historicamente, mulheres são minoria entre os bolsistas de produtividade, conforme mostra o movimento Parent in Science, que reúne cientistas brasileiros que são pais e mães, e tabula e divulga os dados do CNPq.
A reportagem entrou em contato com a agência para mais esclarecimentos, mas não obteve retorno.
Maria, mãe e cientista
Mato-grossense de nascença, Maria já residia em Bauru quando decidiu cursar Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), onde, mais tarde, também conquistou os títulos de mestre e doutora em Sociologia. Durante o doutorado, realizou um estágio na Université de Paris IV-Sorbonne, na França.
Meses após receber o título de doutora em 2014, foi selecionada em concurso para ser professora da Universidade Federal do ABC. Lá, dá aulas nos cursos de Ciências e Humanidades e de Relações Internacionais, e no Programa de Pós-graduação em Economia Política Mundial, que ajudou a fundar. Ela também coordena o grupo de estudos Neoliberalismo, Democracia e Mudança Estrutural do Espaço Intelectual Brasileiro.
A tese de doutorado de Maria recebeu menção honrosa no Prêmio Capes, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, na área de Sociologia. A dissertação de mestrado virou livro – Veredas da mudança ciência brasileira: Discurso, Institucionalização e Práticas no Cenário – e recebeu o Prêmio Marcel Roche para jovens pesquisadores da Associação Latino-América de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (Esocite).
“Achava, ingenuamente, que tinha muitas chances nesse edital. Não era só eu, porque outras pessoas depois me falaram que, quando saiu a lista, estranharam que o meu nome não estava lá”, conta.
Maria sentia-se confiante pois, embora sua produtividade tenha caído no período das licenças, jamais cessou. “Já tinha coisas em andamento.”