Sexta-feira, 26 de Dezembro de 2025
Por Redação Rádio Pampa | 26 de dezembro de 2025
A democracia sempre conviveu com um paradoxo incômodo: o poder que nasce do povo pode, ele próprio, tornar-se opressivo. No século XIX, John Stuart Mill percebeu isso com clareza ao formular sua crítica à chamada tirania da maioria. O risco não estava apenas em governos autoritários, mas no domínio exercido por opiniões prevalecentes, consensos morais rígidos e pressões sociais capazes de silenciar indivíduos e minorias.
Em Sobre a Liberdade, Mill alertava que a opressão moderna não atua apenas por leis, mas por costumes, estigmas e censuras difusas. Quando a maioria se arroga o direito de definir o que pode ou não ser dito, pensado ou defendido, a sociedade permanece formalmente livre, mas se torna, na prática, sufocante. Sua resposta foi clara: só é legítimo restringir a liberdade para evitar dano concreto a terceiros, não para impor moralidades dominantes.
Em Considerações sobre o Governo Representativo, o problema reaparece em chave institucional. A maioria numérica, advertia Mill, pode transformar-se em classe governante permanente, excluindo minorias do processo decisório. Democracia não é apenas contar votos; é deliberar sob limites, com pluralismo e freios que impeçam a dominação.
No século XXI, essas advertências ganharam escala industrial. As redes sociais criaram bolhas informacionais, amplificaram a polarização política e naturalizaram o cancelamento social. A coerção que antes era difusa tornou-se instantânea, viral e punitiva. O resultado é conhecido: autocensura, empobrecimento do debate público e medo de discordar.
É nesse ambiente de desordem social que surge outro risco, menos debatido, mas igualmente grave: a hipertrofia do Judiciário como resposta salvadora. Diante de um espaço público fragmentado, cresce a expectativa de que o Supremo Tribunal Federal funcione como árbitro moral permanente da República. O problema não é a jurisdição constitucional, essencial à proteção de direitos, mas a perda de autocontenção e a transformação gradual do Tribunal em uma espécie de poder moderador informal.
Aqui, Mill encontra aliados importantes. Alexis de Tocqueville já advertia que juízes não podem substituir a política sem corroer os costumes democráticos. Ronald Dworkin defendia os direitos fundamentais como trunfos contra maiorias ocasionais, mas jamais como licença para tribunais governarem no lugar dos representantes eleitos. E Jeremy Waldron foi ainda mais direto: em sociedades pluralistas, o desacordo é legítimo, e deslocar decisões políticas centrais para cortes reduz a dignidade da deliberação democrática.
O paradoxo contemporâneo é evidente. De um lado, massas digitais exercem uma tirania social difusa; de outro, instituições contramajoritárias são tentadas a concentrar poder para conter o caos. O risco é trocar um problema por outro: substituir a tirania da maioria pela tirania do guardião.
A democracia constitucional exige algo mais difícil e mais virtuoso: freios e contrapesos reais, respeito à separação e à independência entre os Poderes e, sobretudo, autocontenção judicial. Nesse equilíbrio, ocupa lugar central a garantia fundamental da liberdade de expressão e de opinião e, como sua forma institucional mais qualificada, a liberdade de imprensa plena, sem censura de espécie alguma. Uma imprensa livre, crítica e desassombrada não enfraquece a democracia; ao contrário, atua como contrapeso indispensável, ilumina excessos, revela abusos e estimula a prudência institucional. Um Supremo sensível a esse papel e consciente de seus próprios limites fortalece a Constituição. Como ensinou Mill, nenhum poder, nem o da maioria nem o de seus guardiões, pode existir sem freios. É nessa contenção recíproca que reside a verdadeira liberdade democrática.
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