Quinta-feira, 25 de Setembro de 2025

Home Colunistas O pecado original do capitalismo

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Adam Smith, ao deslocar o centro da economia da benevolência para o interesse próprio, talvez não imaginasse a revolução que plantava. O padeiro não vende o pão por caridade, mas porque deseja ganhar com isso. Ao formular essa verdade elementar, Smith ajudou a converter o egoísmo, até então vício moral, em virtude pública. Albert Hirschman, em As paixões e os interesses, mostrou como essa reconfiguração ética foi o alicerce do capitalismo moderno: um sistema que, paradoxalmente, transforma vícios privados em benefícios coletivos.

Mas o que parecia um arranjo engenhoso tornou-se, com o tempo, um mecanismo perverso. Ao transformar o egoísmo em virtude, o capitalismo abriu caminho para a corrosão das relações humanas. Pessoas e coisas passaram a ocupar o mesmo plano ontológico: ambas convertidas em mercadorias. Não se trata mais apenas de vender pão; trata-se de vender tempo, sonhos, memórias, vínculos, dignidade.

Essa lógica mercantilizante, intensificada pelo neoliberalismo, impôs uma racionalidade única: tudo é mensurável, tudo é negociável, tudo é redutível ao preço. Se antes as paixões humanas eram domesticadas em nome da ordem, agora são estimuladas, exploradas e monetizadas por algoritmos que conhecem nossos desejos mais íntimos. O resultado é um individualismo radical, uma hiperindividualização, na qual a vida em comum é substituída por contratos precários de conveniência. Esse sistema acaba afetando todo o espectro de valores, o que reduz as pessoas a serem vitoriosas ou fracassadas economicamente. Não é à toa que as doenças de cunho psicológico aumentam na mesma medida que explode o consumo de antidepressivos e os suicídios por depressão atingem níveis alarmantes.

O advento da revolução tecnológica não corrigiu esses excessos; pelo contrário, os amplificou. O hipercapitalismo digital transformou dados em petróleo e nossa atenção em ativo financeiro. A promessa de liberdade individual revelou-se ironicamente uma nova forma de servidão: trabalhamos para as plataformas sem perceber, alimentamos a máquina com nossas informações e ainda agradecemos pelos “serviços gratuitos”.

O problema de fundo é que o sistema, assentado sobre a virtude do egoísmo, perdeu qualquer freio interno. Sua lógica não reconhece limites éticos ou comunitários. A diminuição dos serviços de bem-estar social, em muitos países, agudiza a sensação de desamparo. A lógica darwinista que caracteriza o hipercapitalismo enfraquece os laços comunitários na medida em que joga no colo de cada um a responsabilidade individual por saúde, previdência e até segurança. O egoísmo, nesse caso, ao contrário do papel que exerce como força invisível detectada por Adam Smith, aqui degrada o tecido de solidariedade e incentiva uma luta fratricida de todos contra todos, onde não há lugar para os perdedores. Acumular é sempre preferível a redistribuir, competir é sempre melhor que cooperar, explorar é sempre mais rentável que cuidar. O capitalismo tornou-se um mecanismo autônomo, incapaz de conter seus próprios vícios. Como um Leviatã sem soberano, governa os homens enquanto estes acreditam estar governando a si mesmos.

A pergunta que se impõe é: como superar esse pecado original sem destruir o edifício inteiro? Não basta denunciar o mercado como “Deus”, é preciso compreender seus rituais, suas liturgias e suas instituições. Mais que resistir, é necessário decifrar. Porque só quem entende os mecanismos que governam o capitalismo contemporâneo, de Wall Street às Big Techs, da financeirização às redes sociais, pode imaginar alternativas viáveis.

A economia política nasceu de uma reflexão moral. Talvez seja hora de resgatar esse elo perdido. Precisamos recuperar a dignidade humana como valor não negociável, reintroduzir a noção de limite, reinstaurar o simbólico onde hoje impera a planilha. Do contrário, continuaremos a viver sob um sistema que fez do egoísmo sua virtude cardeal sem a contrapartida social correspondente.

Instagram: @edsonbundchen

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