Segunda-feira, 02 de Dezembro de 2024

Home em foco Recursos oficiais e espúrios para campanhas eleitorais, como o Fundo Eleitoral e as emendas parlamentares, estão estrangulando a competição democrática e ampliando a concentração de poder

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Muito se tem falado em “ataques à democracia”. A invasão das sedes dos Três Poderes no 8 de Janeiro de 2023 chocou o País. Mas os vândalos e golpistas foram reprovados pela esmagadora maioria da população e estão sendo condenados pela Justiça. O que acontece, no entanto, quando o ataque é orquestrado pelos próprios representantes eleitos e financiado com dinheiro do contribuinte? Com a conivência do Executivo, o Legislativo institucionalizou o abuso do poder político e econômico, e esse abuso está sangrando o coração da democracia: as eleições.

Em 2017, após o Supremo Tribunal Federal declarar inconstitucional o financiamento de campanhas por empresas, os congressistas aprovaram um Fundo Eleitoral de R$ 1,7 bilhão. O valor assumidamente alto foi justificado como um mecanismo de transição até que os partidos, como entes privados que são, se organizassem para se sustentar com doações de seus simpatizantes. Não foi o que aconteceu. De lá para cá o valor só aumentou. Neste ano foram destinados R$ 4,9 bilhões às campanhas.

Apologistas do Fundo alegam que a “democracia tem um custo” e que ele garante a pluralidade e a renovação. Mas, para começar, o “custo” da democracia brasileira não tem paralelo no planeta. Uma pesquisa apresentada na Câmara dos Deputados comparando 33 países identificou que já em 2020 os gastos públicos com campanha (R$ 2,03 bilhões) foram 45% maiores que os do segundo colocado, o México, e sete vezes maiores do que a média.

Um levantamento do Instituto Millenium nas eleições de 2022 comprovou que, ao invés de gerar igualdade de oportunidades a minorias (candidatos pobres, negros, mulheres ou neófitos), os recursos são concentrados nas mãos de poucos candidatos, ricos, homens e brancos e que concorrem à reeleição. Ou seja, o Fundo não só é custoso, como, longe de nivelar o jogo, acentua desigualdades e a concentração de poder. Nas eleições deste ano, a taxa de reconduções dos prefeitos foi de 81,4%, a maior da história, superando o pico de 63,7% em 2008.

Para agravar exponencialmente a degeneração da competição eleitoral, na última década as emendas parlamentares – recursos da União distribuídos pelos parlamentares a Estados e municípios – saltaram de 4% do orçamento discricionário (volume já fora da curva mundial) para mais de 20%, ao mesmo tempo que os critérios técnicos e os mecanismos de transparência da distribuição eram desmantelados.

Segundo apuração do Estadão, em 25 das 28 cidades que mais receberam emendas per capita desde 2021, os prefeitos eleitos no domingo foram apoiados por um “padrinho” no Congresso, e 23 deles são de partidos do Centrão. Um levantamento do jornal O Globo com os 178 municípios que mais receberam emendas revelou que em 100 o incumbente foi reeleito e em 45 fez um sucessor do mesmo grupo político. Nas cidades onde os prefeitos concorreram à reeleição, a taxa de recondução foi de quase 90%, podendo chegar a 94% no segundo turno.

Eis o paradoxo: a perpetuação dos poderosos no poder sugeriria que estão fazendo uma boa gestão e os serviços públicos funcionam às mil maravilhas, mas essa conclusão esbarra nos baixíssimos índices de confiança da população em relação aos políticos e aos partidos em geral, bem como ao Congresso.

O sistema representativo nacional está capturado por um círculo vicioso. Vivendo confortavelmente de dinheiro público, os partidos se desobrigam de mobilizar simpatizantes, aliciam eleitores nos períodos eleitorais e depois lhes dão as costas, dedicando-se a administrar seus feudos controlados por uns poucos caciques que não sofrem pressão nem dos filiados nem do poder público para prestar contas. A distância entre os partidos e a população só aumenta, e a crise de representatividade é escancarada em válvulas de escape como os protestos de 2013 ou a súbita ascensão de candidatos ditos “antissistema”, como Jair Bolsonaro em 2018 ou Pablo Marçal em 2024.

Surtos de revolta como o do 8 de Janeiro não acontecem no vácuo. Esses ataques à democracia são, por óbvio, injustificáveis, mas ninguém pode dizer que sejam inexplicáveis. (Opinião/Jornal O Estado de S. Paulo)

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