Sexta-feira, 19 de Abril de 2024

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Indagado sobre o seu extraordinário nível de acertos em relação às previsões que fez sobre o futuro, John Naisbitt, autor do consagrado livro Megatrends, alegou que, apesar das mudanças serem cada vez mais aceleradas, a família, a escola, a religião, o trabalho e os esportes são as constantes essenciais que moldam o cotidiano e permitem um processo evolutivo gradual, menos sujeito a transformações abruptas que possam afetar a vida em sociedade. Essa espécie de amortecedor social possibilita alguma previsibilidade em relação ao porvir, mesmo diante das radicais mudanças que hoje experimentamos. Se essas premissas são válidas para o comportamento das pessoas, conformando-as, até certo ponto, dentro de um espectro orgânico e progressivo, certamente também afetam e desafiam o mundo das corporações, bem como as ações governamentais. Isso importa, sempre mais, na medida em que a modernidade traz questionamentos que confrontam e açulam os pilares apontados por Naisbitt. Não é por acaso, então, que os papéis da família, da escola, da religião, do trabalho e dos esportes estejam na base da atual disputa pela hegemonia da guerra cultural, e seus desdobramentos irão muito além do que é possível supor.

Os fenômenos da urbanização, da fragmentação do tecido social, da revolução tecnológica e dos meios de produção, além da maior diversidade e nível de informação da população, atuam como poderosas alavancas de um embate permanente com o status quo, forçando novas interpretações da história, dos costumes, das leis e da ação política como mediadora desse processo revisionista e até inquisidor. Há, por certo, um grande desconforto das camadas sociais mais conservadoras frente a um progressismo que não mais se basta com a luta de classes, mas abarca temas que ganharam universalidade diante de uma integração impelida por assuntos transversais e interdependentes como a fome, a conservação do meio ambiente, a ameaça nuclear, e os riscos da inteligência artificial. Nessa perspectiva, os elementos antecedentes e que darão ou não legitimidade e consistência ao paradigma em gestação, são justamente o objeto da renhida disputa em curso. De um lado, os conservadores como guardiões das convenções e instituições sociais e, de outro, o progressismo empunhando bandeiras que buscam a sempre incompleta reconciliação entre a razão, o indivíduo e a sociedade.

Nessa arena conflituosa, as normas sociais têm sido exploradas no tabuleiro discursivo como preâmbulo de tensões mais profundas. Trata-se de uma tendência geral, não circunscrita ao Brasil. A nova onda conservadora, por meio da agenda de costumes, ratifica as constantes essenciais que Naisbitt preconizou com tanta acuidade e que são a essência do padrão evolutivo lento, granular e seguro, e por isso mesmo, objeto de ação política. Esse quadro fornece à direita conservadora um anteparo às exaltações mais arrojadas da esquerda progressista, porém ao preço de uma ameaça obscurantista, já que, na revisitação dos conceitos, percebe-se um saudosismo anacrônico. O confronto ideológico em curso seria crítico por si mesmo, mas adquire ares alarmantes a partir das ameaças presentes na condução dos temas, particularmente à luz dos contornos extremados que absorveram. Aliás, a exacerbação dos ânimos, com o ódio pautando a atual polarização, promete radicalizar as atuais discussões, trazendo ainda mais riscos para as democracias e para a segurança das pessoas. Não bastassem os naturais desafios que a sociedade terá que enfrentar no pós-pandemia, o aumento da intolerância, do sectarismo e da hostilidade aberta, contrasta com o indispensável uso racional dos recursos cognitivos e comportamentais, fundamentos do debate civilizado entre contrários. Se o raciocínio que levou o futurólogo John Naisbitt a encontrar, na agenda de costumes, uma janela para enxergar o futuro, não é promissor que se abrace essa mesma agenda para o caminho inverso, com uma intempestiva e ameaçadora volta ao passado, como querem os sentinelas do atraso.

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