Quinta-feira, 02 de Maio de 2024

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Há mais de dois séculos, sob o lema “liberdade, igualdade e fraternidade”, a Revolução Francesa entregou ao mundo, mais do que a derrubada de um governo opressor, a inspiração em prol da democracia liberal e constitucional. Esse sonho dos revolucionários franceses, embora reconhecido como um dos maiores eventos históricos da era moderna, ainda é um projeto inconcluso, e que continua a motivar todos aqueles que almejam mais liberdade, mais justiça social e mais solidariedade. Dentre os vários motivos que fizeram ruir a Bastilha e colocar por terra o reinado de Luis XVI, a desigualdade social e econômica tiveram papel fundamental.

O moribundo sistema feudal e a perversa estratificação social deixavam a maior parte da população francesa em condições precárias, enquanto uma pequena elite desfrutava de privilégios cada vez mais escandalosos. A tomada de consciência, contudo, necessariamente não precisa aflorar de modo tão dramático quanto na França, naqueles tumultuados anos ao final do século XVIII. Ela pode ser construída através de maior esclarecimento, maior envolvimento e maior sensibilidade, com mais gente reconhecendo que a injustiça social não apenas corrói a dignidade das pessoas, mas corrompe a própria noção de democracia e de liberdade.

No Brasil, embora distante espacial e temporalmente do palco europeu que forjou Robespierre, Danton, Marat e tantos outros, também temos um quadro de iniquidade social que nos avilta e envergonha perante o mundo. Nessa perspectiva, a entrevista do médico gaúcho Gilberto Schwartsmann. ao jornal Zero Hora, no último dia 20.07.2023, não deixa de ser um facho de luz, perante nossa histórica indiferença à miséria que nos cerca. Para Schwartsmann, “temos uma elite muito pequena e muito empoderada.

O Brasil é uma sociedade de base escravocrata. Várias pessoas que eram consideradas liberais tinham escravos. Ainda temos muitos problemas de concentração de renda. Temos uma elite muito pouco preocupada com o futuro deste país. Temos, paradoxalmente, algumas famílias ajudando o país. Por meio das leis de incentivo, é verdade, mas ajudam. Agora, há famílias com renda muito alta que não dão a mínima para a arte e a cultura local, não prestigiam, e, quando vão para qualquer evento fora do Brasil, ficam deslumbradas. Às vezes nem entenderam o que viram, porque no dia a dia não vivem a arte.”

Em idêntica linha crítica ao quadro vigente, a elite intelectual também se movimenta. Para o sociólogo Jessé Souza, em vez do olhar estereotipado sobre o brasileiro pobre como alguém indolente, preguiçoso, vagabundo, corrupto, sujo e outros adjetivos pouco nobres, a escravidão emerge como o fenômeno principal da nossa estrutura social, daí derivando o conceito também revisado por ele de classe social. Segundo Jessé, a originação do próprio reconhecimento como ralé, que vem de berço, pela falta de uma gênese de classe média, pela ausência de valores de autorreferência que faltam aos nossos miseráveis. Nessa ótica, a classe média naturalizou o convívio com as profissões mais duras, penosas e insalubres estarem sob as mãos de pretos e pardos, em esmagadora maioria. Nesse sentido, basta olhar para quem limpa nossos banheiros, nossas ruas, passam e lavam as nossas roupas, penduram-se em caminhões de lixo ou os vasculham em busca de comida.

A miséria e a pobreza no Brasil tiveram origem na maldita escravidão que perdurou por mais de 350 anos e foi muito mal conduzida ao seu final, jogando os ex-escravos ao próprio azar, inchando as favelas, tornado gado das elites e da classe média. Onde, por exemplo, seriam admissíveis 50.000 mortes violentas por ano, em esmagadora maioria de pretos e pardos, sem que houvesse uma comoção nacional? O declarado desprezo e inconformidade com pobres embarcando em aviões ou frequentando escolas de classe média, universidades e outros artefatos que distinguem ricos e pobres no Brasil é a prova de que nossas elites ainda não ficaram tempo suficiente no divã, e que a escravidão, sob outra e não menos perversa roupagem, continua entre nós

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