Sexta-feira, 29 de Março de 2024

Home Variedades Chico Buarque lança livro com contos que revelam o patético da condição humana

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Nunca foi tão curto o tempo entre um livro de Chico Buarque e o lançamento do seguinte: dois anos. Torna-se tentador imaginar “Anos de chumbo e outros contos” como uma espécie de continuação do anterior, “Essa gente”, que traçou um retrato explícito do Brasil sob Jair Bolsonaro – de sua eleição em 2018 e do início de seu governo em 2019. E há sinais disso nas duas primeiras histórias e um pouco na terceira. Porém, embora possa ser visto como um livro também político, é, antes de tudo, um livro literário, se a redundância for perdoável.

Ao publicar, pela primeira vez, um volume de narrativas curtas – previsto para chegar às livrarias no próximo dia 22, junto com uma edição especial de “Estorvo”, primeiro romance do autor –, Chico cumpre um destino que era, pode-se dizer, incontornável. Não faz sentido ainda ficar comparando o compositor com o escritor, pois o segundo já mais do que provou ser excelente – e o primeiro é insuperável. Mas alguém que, como letrista, sabe condensar universos em versos, não podia deixar de exercer seu poder de síntese também na prosa. Após seis romances, a hora chegou. Valeu a pena esperar.

Apenas o conto-título, que encerra o livro, poderia, se muito esticado, tornar-se uma novela. Mas sua força está em ter apenas 12 páginas. O desfecho é surpreendente e sufocante. E a opção de esticá-lo reforçaria a confusão de ver Chico como um criador político apenas porque ele assume posições políticas. Ao tratar dos “anos de chumbo” da ditadura militar, o autor é refinado sem deixar de ir direto ao ponto, como exemplifica o trecho reproduzido nesta página.

Os oito contos se bastam, não têm arestas. Rubem Fonseca dizia que escrever contos é mais difícil do que escrever romances e que a poesia é a tarefa mais dura, por exigir maior síntese. Chico afirma não ser poeta por não escrever poemas, mas sempre mostrou, nas letras de canções, dizer muito com pouco.

Diversão com amargor

A primeira história, “Meu tio”, traz uma figura facilmente encontrável por aí. Desrespeita qualquer regra de vida coletiva, humilha pobres e, com seu carrão, voa por avenidas do Rio. O tipo é banal, mas o enredo não é: desvela-se aos poucos a perversidade – não só dele – de sua relação com a sobrinha.

“O passaporte” é divertidíssimo, mas tem seu lado amargo. Apesar de ser narrado em terceira pessoa, “o grande artista” pode muito bem ser o próprio Chico, o homem famoso de esquerda detestado pelos truculentos de direita. Quando o odiado passa a odiar, provoca um grande estrago. Mais uma vez, o Brasil de hoje.

Em “Os primos de Campos”, há polícia violenta, milícias, bandeiras brasileiras… Ou seja, cenas da atualidade. Mas também há algo permanente, que é a questão racial, resumida, por exemplo, na dificuldade de se afirmar quem é negro e quem não é no país. Para não haver dúvida, todos se ferram.]

O Rio como cenário

Seis dos oito contos se passam no Rio. “Cida” acontece no Leblon, mas a protagonista é o lado que o bairro não gosta de mostrar: mulher miserável que vive da bondade, às vezes cruel, de estranhos. O humor está na sua mente delirante, mas é real a filha que gera. Novamente presente, a questão racial aparece no final de forma imprevisível.

Delirante também é “Copacabana”, em que o narrador adolescente – ou que se diz um, pois nada é verossímil – mistura Pablo Neruda, Walt Disney, Ava Gardner, Richard Burton, Romy Schneider e o chefe do tráfico do Morro da Babilônia. A galeria de personagens faz lembrar “PanAmérica”, de José Agrippino de Paula, mas o delírio não chega a tanto.

O ponto de partida de “Para Clarice Lispector, com candura” é, aí sim, algo vivido pelo próprio Chico Buarque. Ele, muito jovem, foi algumas vezes à casa da escritora, que pode ter desenvolvido um sentimento maternal. No conto, porém, o personagem se torna obcecado por Clarice e começa a publicar textos na internet como se fossem dela – algo que muita gente faz. Humor e aflição andam juntos outra vez.

Em “O sítio” há muito mais aflição do que humor. A trama começa no Rio, mas migra para o campo durante a pandemia (“a peste”). O que se imaginava uma temporada curta vira um período maior, aumentando também o ciúme, a tensão e o desalento. A construção é muito rigorosa, como atestam os momentos de suspense.

Quando lido de uma vez só, “Anos de chumbo e outros contos” evidencia como é uma obra diversificada, em enredos e climas, e também coesa por deixar clara a assinatura do autor.

É um retrato do Brasil, novamente, mas não tão cravado nos tempos de hoje quanto o de “Essa gente”. Os quadros são menores, precisos, contundentes. O Chico contista nasce maduro.

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